quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Mulheres da Amazônia escalpeladas

Entenda e saiba com essa matéria sobre o drama das mulheres mutiladas na Amazônia. Acredito que muitas pessoas não tenham conhecimento sobre esse acidente tão comum no norte do país.


















O perigo de um acidente terrível ronda as mulheres da Amazônia: o escalpelamento. A palavra vem de escalpo, o couro cabeludo arrancado do crânio, que era um troféu de guerra para os índios americanos. Na Amazônia, o que provoca o escalpelamento é um acidente nos barcos. Centenas de mulheres e crianças já foram vítimas. Um drama que a maior parte do Brasil nem sabe que existe.

O motor do progresso vem mutilando o corpo e alma dos ribeirinhos. Estas meninas vão carregar um drama para o resto da vida. Elas são vítimas de escalpelamento. Tiveram o couro cabeludo arrancado do crânio e nunca mais terão os cabelos de volta.
Vítima 1 - "Meu cabelo era tudo pra mim"
Vítima 2 - "Já foram 16 cirurgias e continuo em tratamento"
Vítima 3 - "Tem vezes que eu choro, às vezes eu tô no espelho é horrível a situação"
O escalpelamento acontece dentro dessas embarcações sem segurança nenhuma. O motor e o eixo são descobertos pondo em risco quem se aproxima. Veja agora como acontece o acidente: Quando o motor é ligado, o eixo gira em alta velocidade. Durante a viagem, é comum o barco ficar alagado e os passageiros têm que tirar o excesso d'água. Ao se aproximar do eixo, centenas de meninas e crianças da Amazônia foram sugadas e tiveram o couro cabeludo arrancado.

"Eu me abaixei e o motor pegou, o eixo do motor pegou o meu cabelo eu desmaiei imediatamente", conta Tássia Souza, uma das vítimas. "Eu fui me abaixar pra pegar a vasilha pra tirar água", diz Delziane Pantoja, outra vítima. A repórter pergunta: Com você foi mais grave porque o cabelo estava preso no momento do acidente? "Foi escalpe total, porque aí pega tudo, quando tá solto não, tem a possibilidade de pegar só a metade", explica a vítima.


Esta garota, de apenas sete anos, perdeu o couro cabeludo e teve uma orelha decepada. Joice se aproximou do motor do barco do pai dela e foi arrastada pra baixo do eixo. Ela conta que tinha os cabelos compridos que nem a boneca. E, por ironia do destino, foram os cuidados com o cabelo que causaram o acidente. "Eu fui pegar uma escova". Pele morena. Cabelos negros, compridos. É a aparência da mulher ribeirinha. A mistura que vem da miscigenação entre índios e europeus. A ribeirinha é também o alvo mais comum dessa tragédia amazônica, 80% das vítimas do escalpelamento são do sexo feminino. Na maioria dos acidentes o escalpelamento é total, quer dizer, todo couro cabeludo é arrancado e os cabelos não voltam a crescer.
O tratamento é doloroso e dura mais de dez anos. A primeira etapa é repor a pele do crânio com enxertos retirados das pernas. "Eu espero que eu fique boa pra poder voltar logo pra minha casa, pra estudar". Quando o acidente não é tão grave, há uma possibilidade de se recuperar o couro cabeludo. Os médicos recorrem ao expansor, uma espécie de bolsa, que é colocada por baixo da pele do paciente. Toda semana, a prótese recebe soro fisiológico e vai enchendo. O objetivo é esticar a pele e aumentar o couro cabeludo. "É como se eu causasse o que? Uma gravidez nesse couro cabeludo, e essa gravidez causada no couro cabeludo, mais tarde quando eu tirar, esse aparelho vai me sobrar bastante tecido", explica o cirurgião plástico Victor Aifa.


O escalpelamento no norte do país é mais comum do que se imagina. Santarém, Altamira e Barcarena são os municípios que registram mais acidentes deste tipo. Nos últimos 20 anos, quase 200 vítimas foram atendidas na Santa Casa de Belém, 5% morreram. A cada mês, dois acidentes em média são registrados no Pará. Acompanhamos uma fiscalização da capitania dos portos. Veja o que a repórter encontrou durante a blitz.
Da cidade de Belém seguimos para o furo do maracujá, perto da capital. Logo na primeira abordagem já verificamos a falta de segurança. O motor e o eixo deste barco estão sem proteção. Mas o dono diz que não tem perigo viajar assim. "Entrou criança aqui é tudo pra frente, não deixa passar aqui pra trás"As embarcações sem proteção tiveram as habilitações suspensas. Mas a capitania dos portos admite a dificuldade para fiscalizar os barcos por causa da geografia da região. Outro problema é a falta de registro dos casos de escalpelamento. "As embarcações são de caráter familiar e os proprietários das embarcações, portanto, os responsáveis são familiares das vítimas isso gera uma séria dificuldade para que o acidente chegue até a capitania", diz o Sargento da Capitania dos Portos, Daniel de Oliveira Lima.
Durante a viagem pelos rios do Pará nós encontramos este metalúrgico que faz a cobertura dos eixos com aço. "Proteção do volante e do eixo, kit completo".A cobertura custa R$ 90. Mas os ribeirinhos, que geralmente montam os próprios barcos, não têm dinheiro para comprar o kit. Uma ONG, fundada por este médico, quer levar o serviço de forma gratuita aos moradores das regiões mais pobres e já fez parcerias com o governo e a iniciativa privada.
O cirurgião plástico Claudio Brito criou a ONG Sarapó depois de conhecer de perto o drama das escalpeladas. Desde 2001, ele presta assistência às vítimas. "O sofrimento dessas meninas não se resume ao acidente. Depois vêm inúmeros curativos, cirurgias e não é só isso, um momento mais difícil é esse, a hora de encarar o espelho, sempre cruel e implacável ao revelar as mutilações do escalpelamento", diz.
"Não consegui, não gostava, dava vontade de quebrar o espelho, ficou muito feia, mas agora já passou". "Eu quebrava o espelho, chorava, passava, eu sofria muito, fiquei com depressão", dizem as vítimas.
Além da dor e do sofrimento estas meninas têm que enfrentar outro drama: o preconceito. "Eu sabia que as pessoas iam olhar pra ti assim nossa olha só aquela garota não tem cabelo, não tem orelha, isso foi difícil pra mim, pelo comentário das pessoas". "Os pivetes puxaram o boné da minha cabeça, aí todo mundo achando graça, foi muito triste, muito triste mesmo". "Muita gente vinha em casa, queria ver, dizia que tava feio, sofri demais, mas me recuperei disso", contam as meninas.
Depois de tanto sofrimento, essas meninas pensam agora no futuro. E elas têm muitos planos. Joice, que traz no rosto e no pescoço as marcas do escalpelamento, está na segunda série e passa as tardes brincando com os amiguinhos. Ela vai ser dama de honra no casamento de uma tia e diz que precisa ensaiar para a cerimônia. Enquanto ensaia Joice sonha com um presente. "Eu quero uma peruca".

Fonte: Domingo Espetacular

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Tráfico de mulheres


De tempos em tempos assistimos em noticiários reportagens sobre o aliciamento de crianças, adolescentes e, principalmente, mulheres. As últimas são iludidas com promessas de emprego e melhoria de vida em outro país. No entanto, são vítimas de tráfico humano e são obrigadas a trabalharem para o aliciador em troca de comida, abrigo, suas vidas, têm seus passaportes apreendidos. Sem dinheiro para retornar ao país de origem se tornam escravas e muitas não sobrevivem por muito tempo. Regressar ao lar é uma esperança remota para essas mulheres.
A questão é que temos acesso a esses fatos através da mídia uma vez a cada cinco meses, ou mais. Infelizmente, esse crime acontece com uma freqüência maior que a imaginada.

DENUNCIE! Se desconfiar de algo semelhante ao seu redor, não hesite.
O Ministério da Justiça oferece três serviços telefônicos para denúncias de prostituição internacional. Os números 180 e 100 são do disque-denúncia. E o contato com a Coordenadoria de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, pode ser feito pelo telefone (61) 2025-3038. Por questão de segurança, não há necessidade de se identificar.

Confira essa reportagem que extraí de um jornal sobre tráfico de mulheres. Reeditei e publiquei os parágrafos mais marcantes.

Oito brasileiras foram assassinadas este ano vítimas da exploração sexual no exterior. Aliciadores de 10 países atuam no território nacional. Investigação da Polícia Civil brasiliense mostrou o tamanho do esquema no Brasil. Ficou comprovado que o homicídio da ex-prostituta Letícia Mourão, 31 anos, em março deste ano, ocorreu a mando de uma organização criminosa dona de seis prostíbulos na Espanha.
As organizações criminosas especializadas em tráfico de seres humanos mataram pelo menos oito brasileiras em 2009. Houve seis assassinatos na Espanha e um nos Estados Unidos. As vítimas são mulheres que deixaram o país para tentar a vida por meio da prostituição. O crime mais surpreendente, no entanto, ocorreu em território brasileiro, especificamente na capital do país. A morte de uma goiana no Guará revelou que as máfias europeias vinculadas à prostituição internacional não temem a segurança nacional. E dão ordens para aliciadores tirarem a vida daqueles que as ameaçam. Investigação da Polícia Civil brasiliense mostrou o tamanho do esquema no Brasil. Ficou comprovado que o homicídio da ex-prostituta Letícia Mourão, 31 anos, em março deste ano, ocorreu a mando de uma organização criminosa dona de seis prostíbulos na Espanha. Órgãos federais e estaduais também têm informações de que aliciadores de outros 10 países — Portugal, França, Suíça, Irlanda, Holanda, Bélgica, Reino Unido, Israel e Estados Unidos — têm influência dentro das fronteiras brasileiras. Movimentam dinheiro, convencem novas vítimas e matam, se preciso. Goiás aparece como o estado que mais exporta brasileiros. Há 250 mil goianos no exterior. Boa parte vive da prostituição. Alguns voltam ao país como recrutadores. “Esses grupos criminosos são organizados e estruturados. Enviam pessoas principalmente para Espanha e Portugal, pela facilidade da língua, e para a Suíça. Depois, vêm de fora para dentro”, explicou o procurador da República Daniel de Resende Salgado, do Ministério Público Federal de Goiás. O órgão se dedica ao combate à prostituição internacional desde 2004. Atuou na condenação de 20 pessoas por exploração sexual no exterior.

O alvo

A maioria das mulheres atraídas pelas máfias estrangeiras é goiana. Organizações criminosas internacionais enviam aliciadores ao Brasil para convencê-las a viver da prostituição na Europa.


Veja o perfil delas:
  • Têm entre 18 e 26 anos;

  • O grau de instrução não passa do ensino fundamental;

  • Não têm condições de arcar com pacotes de turismo sequer para um local no interior do país. Por isso, desembarcam endividadas na Europa;

  • São de famílias de baixa renda, residentes na periferia;

  • A maior parte é de cidades do interior de Goiás;

  • Boa parte se encontra desempregada antes da partida para o exterior;

  • A maioria tem um ou dois filhos, geralmente de pais diferentes;

  • Tiveram relacionamentos frustrados;
  • A maioria das futuras garotas de programa são convencidas por aliciadores instalados no Brasil e embarcam com a esperança de vencer na vida. Ao chegar, porém, deparam-se com condições próximas à escravidão. Elas têm o passaporte confiscado pelas organizações criminosas e muitas acabam obrigadas a atender de 10 a 12 clientes por noite ;

  • A maior parte tem menos de 30 anos. Algumas são exploradas inclusive pela máfia russa.
Em regime de escravidão

Regras impostas pelas organizações que exploram a prostituição incluem jornada de até 22 horas de trabalho e multas pesadas:

Jornada que em alguns casos chegam a 22 horas. Pagamento de 40 euros (cerca de R$ 120) por programa de 30 minutos —metade para a mulher, metade para o dono do prostíbulo. No máximo 45 minutos para descanso e alimentação em toda a labuta diária. E, por fim, multas em caso de atraso, cochilo ou rejeição de parceiro sexual. A rotina de trabalho de uma prostituta brasileira na Europa se aproxima da escravidão e lembra o século 19. Funciona de acordo com as ordens de organizações criminosas especializadas em tráfico de seres humanos e exploração sexual, que lucram principalmente com a mão de obra saída do Brasil.
Por Guilherme Goulart - Correio Braziliense


SHYIMA HALL - Vítima de contrabando de crianças.

Acompanhe a história dessa menina que foi traficada. A matéria é longa, porém muito interessante. Vale a pena!


Vendida pelos pais e contrabandeada para os Estados Unidos, Shyima Hall foi mantida presa durante dois anos como escrava.


Em 2007, Shyima, nascida em Alexandria, no Egito, encerrou em sua vida um capítulo que teria preferido jamais escrever. Tudo começou em 2000, quando seus pais, muito pobres, venderam-na a um casal rico no Cairo. O casal se mudou para os Estados Unidos e conseguiu fazer com que a menina de 10 anos entrasse ilegalmente no país para trabalhar na casa deles.


Tráfico e exploração infantil


De acordo com o Departamento de Saúde e Serviços Hu­manos dos Estados Unidos, o tráfico de pessoas é o tipo de crime que mais cresce no mun­­­­do. Até 800 mil pessoas são traficadas por ano pelas fronteiras internacionais; os Estados Unidos são um destino comum, recebendo até 17.500 todo ano para serem exploradas sexualmente ou como mão-de-obra. Shyima, acostumada a dificuldades, ficou nesta última categoria. Era uma dos 11 filhos de pais paupérrimos e foi criada numa casa com um banheiro só que abrigava três famílias. Ela, os pais e os irmãos dormiam em um quarto, sobre cobertores no chão. O pai costumava sumir durante semanas. Shyima conta que “quando estava em casa, ele batia na gente”.
Ela nunca ia à escola e o futuro não era nada promissor. Ainda assim, tinha esperanças. Como contou anos depois no tribunal, “lá havia felicidade. Eu tinha quem cuidasse de mim”.
Aos 8 anos, ela foi morar com um casal de 30 e poucos anos, Abdel-Nasser Youssef Ibrahim e a mulher, Amal Ahmed Ewis-Abd Motelib. A irmã mais velha de Shyima trabalhara para eles como empregada doméstica, mas o casal a demitiu, acusando-a de furtar dinheiro. Como par­te do acordo que o casal fez com os pais de Shyima, ela foi obrigada a rtrabalhar como empregada doméstica, para substituir a irmã.
Dois anos depois, Ibrahim e Motelib decidiram se mudar para os Estados Unidos com os cinco filhos para abrir uma empresa de importação e exportação. Shyima não queria ir. Hoje ela diz que Ibrahim lhe falou que ela não tinha opção. Shyima se lembra de estar perto da cozinha, ouvindo os patrões conversarem com seus pais.“Escutei a negociação e aí meus pais me entregaram a essa gente em troca de 30 dólares por mês”, contou.



Escravização infantil



Shyima entrou nos Estados Unidos com um visto de turista, válido por seis meses, obtido de forma ilegal, e passou a morar na casa da família, de dois andares, num condomínio fechado em Irvine. Quando não estava trabalhando, ficava restrita a uma parte da garagem, com 3,5 por 2,5 metros, sem janelas, sem ar condicionado nem aquecimento. Ela diz que às vezes a família a trancava lá. A mobília da senzala: um colchão sujo, um abajur e uma mesinha. Shyima guardava as roupas na mala.


Rotina de uma mini-escrava


Todo dia acordava às seis da manhã, no mesmo horário dos filhos gêmeos do casal, que tinham 6 anos. Obedecia às ordens de todos, até mesmo das três outras filhas do casal, de 11, 13 e 15 anos. Cozinhava, servia à mesa, lavava a louça, fazia as camas, trocava os lençóis, lavava e passava a roupa, tirava o pó, varria, aspirava e passava pano úmido no chão. Era comum trabalhar até meia-noite. Certo dia, quando tentou lavar a própria roupa, Motelib a impediu: “Ela me disse que eu não podia pôr minhas roupas na máquina de lavar porque eram mais sujas que as deles.”Desde então, Shyima passou a lavar suas roupas num balde de plástico, que guardava próximo ao colchão, e a pendurá-las para secar nu­ma grade de metal perto das latas de lixo.Motelib e Ibrahim batiam em Shyima, mas o isolamento e as agressões verbais eram piores. “Eles me chamavam de estúpida, diziam que eu não era nada”, conta. Shyima comia sozinha e não podia frequentar a escola nem sair da casa sem que Motelib ou Ibrahim a escoltassem. O casal ordenava-lhe que não contasse nada a ninguém sobre a situação: “Eles me ameaçaram, dizendo que a polícia me prenderia porque eu era ilegal.”Embora nunca admitisse ter saudades da mãe, chorou abertamente na frente de Motelib e Ibrahim quando teve uma forte gripe. “Mesmo doente, tive de trabalhar. Não me deram nem remédio.” À noite, exausta e sozinha, Shyima fitava a escuridão. Ibrahim lhe tirara o passaporte e ela temia ficar presa para sempre. Quando fez 12 anos, não houve festa. A menina passou o aniversário fazendo o serviço de casa.


Denúncia anônima


Seis meses depois, na manhã de 9 de abril de 2002, Carole Chen, assistente social do Serviço de Proteção à Criança de Orange County, atendeu a um chamado anônimo (supostamen­te de um vizinho do casal) que denunciava um caso de agressão infantil. A pessoa disse que uma menina morava na garagem de uma casa, e trabalhava como empregada sem ir à escola. Chen, junto de Tracy Jacobson, investigadora da polícia de Irvine, bateu à porta de Ibrahim. Quando ele atendeu, Jacobson perguntou quem mais morava na casa. Ibrahim citou a mulher e os cinco filhos. “Há outras crianças?”, pressionou a policial. Ibrahim admitiu que havia uma menina de 12 anos. Afirmou que era parente distante. “Posso conversar com ela?”, perguntou Jacobson.Fazendo faxina no andar de cima, Shyima não sabia que a salvação estava a uma distância mínima. Ibrahim chamou-a em árabe e disse-lhe que descesse e negasse que trabalhava para eles. Malvestida, com uma camiseta marrom e calças largas, ela correu até a porta.Chen, que percebeu que as mãos da menina estavam vermelhas e machucadas, chamou um tradutor pelo celular. Shyima disse ao tradutor que estava no país há dois anos e nunca fora à escola.Jacobson pôs a menina sob custódia preventiva. No ban­co de trás do carro da polícia, a caminho de um lar coletivo para crianças, onde ficaria temporariamente, Shyima rezou para não ter de encarar de novo seus captores.“Ela era incrível, uma criança muito forte”, lembra a policial. “Nunca chorou. Gostou de ficar sob custódia, ao contrário das outras crianças, porque assim se sentia segura.”Dali a algumas horas, Jacobson, munida de um mandado de busca, voltou à casa de Ibrahim com agentes do FBI e do ICE, órgão do governo americano que cuida da imigração e da alfândega. Na garagem, fotografaram o colchão manchado de Shyima. Havia um balde de água com sabão junto a um abajur quebrado e roupas dobradas no chão.


Contrato de escravidão


“Shyima vivia numa situação de contraste total em relação ao restante da família”, revela Jacobson. “Já vi animais de estimação mais bem tratados”, acrescenta Bob Schoch, agente do ICE. Na esperança de justificar o negócio, Ibrahim mostrou aos agentes o contrato escrito à mão e registrado em cartório que ele e os pais de Shyima haviam assinado.“O contrato dizia que a menina teria de trabalhar para eles durante dez anos”, explica Jacobson, em troca do pagamento de 30 dólares por mês aos pais. O investigador prendeu Ibrahim e Motelib e acusou-os de conspiração, de servidão involuntária, de apropriar-se do trabalho de outra pessoa e de abrigar estrangeiros ilegalmente.


Alforria


No dia do resgate de Shyima, os funcionários da imigração lhe propuseram que escolhesse entre voltar ao Egito ou ficar nos Estados Unidos, morando num lar adotivo. Nervosa e hesitante, Shyima telefonou ao pai, no Egito, e falou de supetão: “Quero ficar aqui.” O pai da menina ficou chateado, mas Shyima já havia decidido: queria começar uma vida nova.
Durante os dois anos seguintes, Shyima morou com duas famílias adotivas. No primeiro lar, aprendeu a falar e a ler em inglês. No segundo, em San José, queriam que fizesse voto estrito de obediência à religião muçulmana e, depois de uma discussão, deixaram-na num lar coletivo local. “Eu só queria ser uma adolescente americana comum”, diz ela.
Logo seu desejo se realizou. Chuck e Jenny Hall, pais de duas meninas e um garoto, tinham acabado de comprar uma casa de quatro quartos em Orange County e decidiram que havia espaço para mais filhos. Depois de adotar uma menina de 15 anos e o sobrinho de Chuck, de 13, estavam dispostos a receber mais um. “No primeiro encontro com Shyima”, diz Chuck, gerente de uma empresa de uniformes, “a gente logo se entendeu. O senso de humor dela era igual ao meu.” Shyima só fez duas perguntas aos possíveis pais: se havia regras na casa e quais os serviços que teria de fazer. A resposta de Chuck: “Tudo é negociável.”“A regra número um é ir à escola e fazer o dever de casa”, acrescentou Jenny, orientadora educacional. “Va­mos tratá-la como filha. Você vai fazer parte da nossa família.”


Shyima com seus irmãos em seu novo lar.







Qual a pena para quem explora o trabalho infantil?

Enquanto isso, Ibrahim e Motelib admitiram a culpa ao juiz para evitar o julgamento formal. Na audiência final do processo, em outubro de 2006, Shyima ficou nervosa quando ouviu o pedido de clemência: “O que aconteceu deveu-se à minha ignorância da lei, mas assumo toda a responsabilidade”, disse Ibrahim ao juiz.
Ibrahim recebeu uma pena reduzida de três anos de prisão e Motelib, de 22 meses. O casal também teve de pagar a Shyima 76.137 dólares pelo tempo em que trabalhou. Ambos serão deportados para o Egito quanto saírem da cadeia.

Depois da audiência, Shyima comemorou indo comprar um vestido para usar no baile dos ex-alunos da escola secundária. “Ela tem força de vontade e é independente”, diz Jenny que, com o marido, adotou Shyima legalmente em 2006. No futuro, Shyima diz que gostaria de ser policial, para ajudar os outros. Também quer voltar ao Egito algum dia para visitar os irmãos e as irmãs. Mas, por enquanto, está contente, vivendo o sonho que nunca imaginou realizar: ter a vida de uma adolescente comum.

Por Mary A. Fischer

VIOLÊNCIA MASCULINA NO CONGO.

Eram cerca de onze da noite quando homens armados invadiram a cabana de Kazungu Ziwa, colocaram um facão no seu pescoço e abaixaram sua calça com força. Ziwa é um homem pequeno, tem cerca de 1,40m de altura. Ele tentou reagir, mas contou ter sido rapidamente vencido. "Eles me violaram", contou. "Foi horrível, fisicamente falando. Fiquei tonto. Meus pensamentos foram embora". Durante anos, as colinas com densas florestas e os lagos cristalinos e profundos da República Democrática do Congo oriental têm sido um poço de atrocidades. Agora, ao que parece, há outro problema preocupante: homens que violam homens. Segundo representantes da Oxfam, da Human Rights Watch e das Nações Unidas, além de várias organizações de ajuda humanitárias congolesas, o número de homens que sofrem ataques aumentou acentuadamente nos últimos meses, uma consequência das operações militares conjuntas Congo-Ruanda contra rebeldes que realizam atos de violência sem limites contra civis. Agentes humanitários têm dificuldades em explicar a explosão repentina nos casos de violação de homens. A melhor resposta, dizem eles, é que a violência sexual contra homens é mais uma forma encontrada pelos grupos armados de humilhar e desmoralizar comunidades congolesas, subjugando-as.


HISTÓRICO DE VIOLÊNCIA

As Nações Unidas já consideram o Congo Oriental a capital mundial do estupro. Centenas de milhares de mulheres foram sexualmente atacadas pelos vários grupos armados que ocupam essas colinas. Agora, essa área está atravessando um dos períodos mais sangrentos em anos. As operações militares conjuntas começaram em janeiro entre Ruanda e Congo, vizinhos estilo Davi e Golias que até recentemente eram inimigos mortais, deveriam acabar com o problema dos rebeldes assassinos ao longo das fronteiras e dar início a uma nova era de cooperação e paz. As esperanças foram às alturas após a rápida captura de um general renegado que tinha derrotado tropas governamentais e ameaçado marchar por todo o país.
No entanto, organizações de ajuda humanitária afirmam que as manobras militares provocaram terríveis ataques de vingança, com mais de 500 mil pessoas deslocadas de suas casas, dezenas de vilas queimadas e centenas de moradores massacrados, incluindo crianças pequenas, que eram lançadas ao fogo. A culpa não é só dos rebeldes. Segundo grupos de direitos humanos, soldados do Exército congolês estão executando civis, estuprando mulheres e recrutando moradores de vilas para carregar seus alimentos, munições e equipamentos pela selva. Geralmente, essa é uma caminhada mortal através de uma das paisagens tropicais mais incríveis da África – também cenário de uma guerra devastadora e complicada que dura mais de uma década. "Da perspectiva humanitária, as operações conjuntas são desastrosas", disse Anneke Van Woudenberg, pesquisadora da organização Human Rights Watch. Os casos de violações de homens se estendem por centenas de quilômetros, e possivelmente incluem centenas de vítimas. A Ordem dos Advogados Americanos, que administra uma clínica de violência sexual em Goma, disse que mais de 10% dos casos atendidos em junho eram de homens. Brandi Walker, agente humanitário do hospital Panzi, na vizinha Bukavu, disse: "Em vários lugares aonde vamos, as pessoas comentam que também os homens estão sendo violentados". Entretanto, ninguém sabe exatamente quantos estão sofrendo esse tipo de abuso. Os homens daqui, como em todos os lugares, relutam em se abrir. Vários homens que o fizeram afirmaram terem sido instantaneamente rejeitados pela comunidade – tornando-se figuras solitárias e ridicularizadas. Desde que foi estuprado, há várias semanas, Ziwa, 53 anos, não tem demonstrado muito interesse em praticar veterinária, sua atividade há anos. Ele manca (sua perna esquerda foi esmagada no ataque), usando uma bata branca de laboratório, com a palavra "veterinário" escrita de caneta vermelha, carregando algumas pílulas para cachorros e ovelhas. "Só de pensar no que aconteceu me deixa cansado", disse ele. O mesmo ocorre com Tupapo Mukuli, que disse ter sido imobilizado e violentado por vários homens numa plantação de mandioca, há sete meses. Mukuli é o único homem na ala de estupros do hospital Panzi, que está cheio de mulheres em recuperação de ferimentos relacionados ao ataque sexual. Muitas tricotam roupas e tecem cestas para ganhar algum dinheiro, enquanto seu corpo se restabelece. Porém, Mukuli fica de fora. "Não sei fazer cestas", disse ele. Assim, ele passa o dia sentado num banco, sozinho.


Civis de Goma

RECUPERAÇÃO
Os casos de violação de homens ainda representam apenas uma pequena fração dos crimes cometidos contra as mulheres. Contudo, para os homens envolvidos, dizem agentes humanitários, a superação é mais difícil. "A identidade do homem está muito relacionada ao poder e ao controle", disse Walker. Num lugar onde a homossexualidade é um grande tabu, a violência sexual carrega uma dose extra de vergonha. "Riem de mim", disse Mukuli. "As pessoas da minha vila dizem: 'Você não é mais homem. Aqueles homens do mato transformaram você na esposa deles'."


Agentes de ajuda humanitária afirmam que a humilhação é muitas vezes tão severa que os homens vítimas de violação só se pronunciam se tiverem um problema de saúde urgente, como inchaço abdominal ou sangramento contínuo. Às vezes, nem mesmo isso é suficiente para que eles falem. Van Woudenberg disse que dois homens cujos pênis foram fortemente amarrados com uma corda morreram alguns dias depois, pois ambos estavam envergonhados demais para pedir ajuda. As castrações também parecem estar aumentando: mais homens feridos aparecem em grandes hospitais.

DENÚNCIAS

No ano passado, a epidemia de estupros do Congo parecia estar se acalmando um pouco, com menos casos relatados e a prisão de alguns estupradores. Porém, hoje, aquela pequena camada de ordem e lei foi aparentemente removida. Segundo o relato de moradores de vilas, está aberta a temporada de caça a civis. Muhindo Mwamurabagiro, uma mulher alta e graciosa com braços longos e fortes, relatou o estupro sofrido. Ela caminhava em direção ao mercado com amigas, quando foram repentinamente cercadas por um grupo de homens nus. "Eles nos pegaram pelo pescoço, nos jogaram no chão e nos estupraram", disse ela. Pior, disse ela, um dos estupradores era de sua própria vila. "Eu gritei: 'Eu conheço você! Como pode fazer isso?'" Uma mãe contou que um representante de paz das Nações Unidas violou seu filho de 12 anos. Um porta-voz da ONU disse não ter sido informado sobre o caso específico, mas confirmou a existência de várias novas denúncias de abuso sexual contra representantes de paz no Congo, e que uma equipe foi enviada no final de julho para investigar. Profissionais de saúde do país estão ficando irritados. Muitos defendem uma solução política, não militar, e afirmam que forças ocidentais deveriam colocar mais pressão sobre Ruanda. O país vizinho é amplamente acusado de preservar sua própria estabilidade ao manter a violência do outro lado da fronteira. "Entendo que o mundo se sinta culpado sobre o que aconteceu em Ruanda, em 1994", disse Denis Mukwege, principal médico do hospital Panzi, referindo-se ao genocídio ocorrido no país. "Mas será que o mundo também não deveria se sentir culpado pelo que acontece no Congo hoje?"
Fonte: Jeffrey Gettleman
do New York Times